13/06/2019
por
Uma grande controvérsia no cenário jurídico era acerca da validade (ou não) da hipoteca de unidades do empreendimento realizada pela incorporadora, em que já existia compromisso de compra e venda.
A hipoteca pode ser conceituada como “direito real de garantia, em virtude do qual um bem imóvel (exceto navios e aeronaves) remanesce na posse do devedor ou te terceiro, assegurando preferencialmente ao credor o pagamento de uma dívida.”[1]
Resumidamente, a questão da hipoteca decorria do contrato de financiamento realizado pela incorporadora com a instituição financeira, dado como garantia as unidades em construção que não haviam sido vendidas ou, ainda, em casos de compromisso de compra e venda já firmado, as incorporadoras acrescentavam previsão acerca da possibilidade da instituição da hipoteca.
Adimplindo as obrigações perante a instituição financeira, procedia-se à liberação do gravame. Porém, quando a incorporadora se quedava inadimplente, o imóvel (que às vezes já se encontrava pronto e na propriedade do comprador) era utilizado para quitar a dívida em face da instituição financeira.
Esses compromissários compradores (e até mesmo proprietários) dos imóveis dados em hipoteca começaram a ingressar com medidas judiciais visando a ineficácia da hipoteca firmada, nada mais do que protegendo seu patrimônio.
Pela relevância e quantidade de ações, o entendimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ), até 2005, acabou se firmando em diferenciar as hipóteses de validade da hipoteca perante o compromissário comprador: (i) se o registro da hipoteca no cartório de registro de imóveis fosse antes da celebração do compromisso de compra e venda da respectiva unidade, era considerada válida; (ii) se o registro da hipoteca ocorresse depois da assinatura do compromisso de compra e venda, não seria considerada válida[2], não havendo necessidade sequer de registro do compromisso.
Entretanto, houve relevante modificação do cenário no STJ quando diversos julgados começaram a afirmar que até mesmo nos casos da hipoteca registrada anteriormente à assinatura do compromisso de compra e venda, esta não deveria ser considerada válida[3].
Assim, não tardou em ser elaborada a Súmula n.º 308 do STJ, que justamente sedimentou esse entendimento, não diferenciando o momento da constituição da hipoteca, tornando-a ineficaz perante o compromissário comprador, in verbis:
Súmula 308: A hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel.
O ilustre Relator, Ministro Ruy Rosado de Aguiar Júnior, no Recurso Especial n.º 187.940/SP que também deu azo à referida súmula, assim destacou:
“(…) o princípio da boa-fé objetiva impõe ao financiados da edificação de unidades destinadas à venda aprecatar-se para receber o seu crédito da sua devedora ou sobre os pagamentos a ela efetuados pelos terceiros adquirentes. Ninguém que tenha adquirido imóvel nesse País, financiado pelo SFH, assumiu a responsabilidade de pagar a sua dívida e mais a da construtora perante o seu financiador. ”
Portanto, o pedido formulado não se refere à desconstituição da hipoteca, mas apenas ao reconhecimento, através de sentença declaratória, de que a hipoteca não é exigível (ineficaz) em relação ao promitente comprador, tanto nos casos em que a hipoteca é constituída antes do compromisso de compra e venda, quanto depois dele.
O entendimento seguiu na mesma linha desde a elaboração da súmula 308, apesar de algumas práticas das incorporadoras, que continuaram a dar imóveis compromissados à venda como garantia[4] e, ainda, apesar de instituições financeiras aceitarem a hipoteca em imóveis quitados[5].
Restando sedimentada a questão da hipoteca no poder judiciário, foram criando-se algumas alternativas no mercado imobiliário, visando a concessão ou o aumento de crédito para financiamento, inclusive utilizando-se da alienação fiduciária das futuras unidades.
Rapidamente, no que se refere à conceituação da alienação fiduciária, tendo por base a inteligência do artigo 22 da Lei n° 9.514/97, a alienação fiduciária de coisa imóvel é negócio jurídico pelo qual o devedor-fiduciante contrata a transferência, ao credor-fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel, e isto com finalidade de salvaguarda.
Assim preconiza o ilustre Melhim Nalmen Chalhub:
“Na medida em que o devedor transfere a propriedade do imóvel ao credor, até que a dívida seja paga, resulta claro que essa modalidade de alienação caracteriza-se pela temporariedade e pela transitoriedade; o credor adquire o imóvel não com o propósito de mantê-lo com sua propriedade, em caráter perpétuo e exclusivo, mas com a finalidade de garantir-se, mantendo-o sob seu domínio até que o devedor-fiduciante pague a dívida, e somente até ai.”[6]
Com isso, houve um novo aumento no número de ações versando acerca da ineficácia da alienação fiduciária perante os compromissários compradores, reingressando na celeuma original da hipoteca, chegando ao STJ recentemente.
Assim, em uma ação declaratória cumulada com obrigação de fazer, uma promitente compradora ingressou no judiciário no ano de 2012, visando a baixa da alienação fiduciária realizada entre a incorporadora e a instituição financeira, sem o seu consentimento e também visando a outorga da escritura, uma vez que a unidade se encontrava quitava no momento da alienação fiduciária. Além da ofensa ao direito de informação (previsto no art. 6º, inciso III do Código de Defesa do Consumidor), foi alegado também a aplicação analógica da súmula 308 do STJ.
Foi proferida sentença de parcial procedência dos pedidos, tornando definitiva a outorga da escritura pública do imóvel em favor da compromissária compradora e a respectiva baixa da alienação fiduciária existente.
Apresentado recurso de apelação pelo banco, foi proferido acórdão negando provimento ao mesmo.
Chegando no STJ em 2016, em sede do Recurso Especial n.º 1.576.164 interposto pela instituição financeira, a Ministra Relatora Nancy Andrighi proferiu voto não provendo o recurso no último dia 23 de maio.
Com a lucidez habitual, a Ministra esclareceu as diferenças das garantias imobiliárias de hipoteca e de alienação fiduciária, bem como traçou uma análise sistemática da súmula 308, inclusive destacando trechos do parecer da Procuradoria de Justiça realizado à época que, em suma, serviu de ratio decidendi do referido enunciado. Extrai-se breve trecho do voto:
“Da análise dos julgados que motivaram a elaboração do preceito, extrai-se um escopo de controle da abusividade das garantias constituídas na incorporação imobiliário, de forma a proteger o consumidor de pactuação que acaba por transferir os riscos do negócio a ele, impingindo-lhe desvantagem exagerada”[7]
Por fim, o voto da ministra analisa a aplicação analógica da súmula 308 nas hipóteses de alienação fiduciária firmada entre a construtora (incorporadora) e o agente financeiro, fundamentado que as diferenças estabelecidas entre a alienação fiduciária e a hipoteca não seriam suficientes para afastar a aplicação da súmula nos casos específicos da alienação fiduciária.
Ou seja, a fundamentação da súmula 308, que observou os princípios da boa-fé e da função social do contrato, também servem de fundamentação para os casos de alienação fiduciária, citando, inclusive, decisões monocráticas do STJ referente ao tema, também recentes[8].
Após o voto da Ministra Relatora, foi requerido vistas pelo Ministro Ricardo Villas Bôas, que acabou votando por negar provimento ao Recurso Especial, utilizando-se do fundamento que “independente da natureza jurídica do instituto utilizado pelas partes contratantes como garantia do contrato de abertura de crédito para a construção da unidades habitacionais (hipoteca ou alienação fiduciária), referida pactuação não tem eficácia perante o consumidor adquirente do imóvel que não interveio no negócio.”
Quanto à aplicação da Súmula 308, o Ministro também entende que dos precedentes que a originaram tinham a nítida intenção de proteger o consumidor de boa-fé adquirente do imóvel.
Dessa forma, há clara consolidação do entendimento do STJ sobre o tema, no mesmo sentido da questão da hipoteca e agora para as alienações fiduciárias, que devem ser bem observadas pelas incorporadoras, instituições financeiras e, também, pelos consumidores.
O escritório Natal & Manssur Sociedade de Advogados possui uma equipe especializada que pode auxiliá-los quanto ao tema em questão.
[1] FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: Direito Reais. 14ª ed. rev., ampl. e atual. Salvador: JusPodivm, 2018. v. 5, pg. 976.
[2] “CIVIL. PROMESSA DE COMPRA E VENDA. HIPOTECA ANTERIOR. Se, à data da promessa de compra e venda, o imóvel já estava gravado por hipoteca, a ela estão sujeitos os promitentes compradores, porque se trata de direito real oponível erga omnes; o cumprimento da obrigação de escriturar a compra e venda do imóvel sem quaisquer onerações deve ser exigida de quem a assumiu, o promitente vendedor. Recurso especial conhecido, mas não provido” (STJ, 3a Turma, REsp 314.122/PA, Rel. Min. Ari Pargendler, j. em 27-6-2002, DJ de 5-8-2002
[3]“CIVIL E CONSUMIDOR. IMÓVEL. INCORPORAÇÃO. FINANCIAMENTO. SFH. HIPOTECA. TERCEIRO ADQUIRENTE. BOA-FÉ. NÃO PREVALÊNCIA DO GRAVAME. 1 – O entendimento pacificado no âmbito da Segunda Seção deste STJ é no sentido de que, em contratos de financiamento para construção de imóveis pelo SFH, a hipoteca concedida pela incorporadora em favor do Banco credor, ainda que anterior, não prevalece sobre a boa-fé do terceiro que adquire, em momento posterior, a unidade imobiliária. 2 – Recurso especial conhecido, mas não provido.” (STJ, Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, REsp nº 557.369/GO, Rel. Min. FERNANDO GONÇALVES, j. em 7/10/2004, DJ de 08/11/2004)
[4] Vide REsp n.º 1.601.575.
[5] Vide REsp n.º 1.478.814
[6] CHALHUB, Melhim N. Alienação Fiduciária: Negócio Fiduciário. 5. ed., rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 242.
[7] Acórdão do REsp 1.576.164, fls. 85
[8] REsp 1.562.395/DF, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, publicado em 10/08/2018; REsp 1.682.022/DF, Rel. Min. Marco Buzzi, publicado em 10/04/2018; REsp 1.520.356, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, publicado em 07/12/2017; e REsp 1.551.462/DF, Rel. Min. Raul Araújo, publicado em 10/08/2017